O ROSTO DA MÃE DO REDENTOR – Catequese de S. João Paulo II
Dizendo
que “a Virgem Maria é reconhecida e honrada como verdadeira Mãe
de Deus Redentor” (Lumem Gentium, 53), o Concílio chama a
atenção para o ligame existente entre a maternidade de Maria e a
redenção.
Depois
de ter tomado consciência do papel materno de Maria, venerada na
doutrina e no culto dos primeiros séculos como Mãe virginal de
Jesus Cristo e, portanto, Mãe de Deus, na Idade Média a piedade e a
reflexão teológica da Igreja aprofundam a sua colaboração na obra
do Salvador.
Explica-se
este atraso com o fato que o esforço dos Padres da Igreja e dos
primeiros Concílios ecumênicos, centrado como estava no mistério
da identidade de Cristo, deixou necessariamente no esquecimento
outros aspectos do dogma. Só progressivamente é que a verdade
revelada poderá ser explicitada em toda a sua riqueza. No decurso
dos séculos, a Mariologia se orientará sempre em função da
Cristologia. A própria maternidade divina de Maria é proclamada no
Concílio de Éfeso, sobretudo para afirmar a unidade pessoal de
Cristo. O mesmo aconteceu para o aprofundamento da presença de Maria
na história da salvação.
2.
No final do segundo século Santo Irineu, discípulo de Policarpo,
põe já em evidência a contribuição de Maria na obra da salvação.
Ele compreendeu o valor do consenso de Maria no momento da
Anunciação, reconhecendo, na obediência e na fé da Virgem de
Nazaré à mensagem do anjo, a antítese perfeita da desobediência e
da incredulidade de Eva, com efeito benéfico sobre o destino da
humanidade. De fato, assim como Eva causou a morte, de igual modo
Maria, com o seu “sim”, se tornou “causa de salvação” para
si própria e para todos os homens (cf. Adv. Haer. 3.22, 4; SC
211, 441). Mas trata-se de uma afirmação não desenvolvida de
modo orgânico e habitual pelos outros Padres da Igreja.
Essa
doutrina, porém, é sistematicamente elaborada pela primeira vez, no
final do décimo século, na “Vita di Maria”, escrita por um
monge bizantino, João, o Geometra. Maria é aqui unida a Cristo, em
toda a sua obra redentora, participando, segundo o plano divino, na
Cruz e sofrendo pela nossa salvação. Ela permaneceu unida ao Filho
“em toda a ação, atitude e vontade” (Vita di Maria, Bol.
196, f. 122 v.). A associação de Maria à obra salvífica de
Jesus realiza-se mediante o seu amor de Mãe, um amor animado pela
graça, que lhe confere uma força superior: a mais isenta de paixão
mostra-se a mais compassiva (cf. ibid. Bol. 196, f. 123 v.).
3.
No Ocidente São Bernardo, falecido em 1153, ao dirigir-se a
Maria, assim comentava a Apresentação de Jesus no Templo: “Oferece
teu Filho, sacrossanta Virgem, e apresenta ao Senhor o fruto do teu
seio. Para a nossa reconciliação com todos, oferece a hóstia
santa, agradável a Deus.” (Sermo 3 in Purif., 2, PL 183,
370).
Um
discípulo e amigo de São Bernardo, Arnaldo de Chartres, ressalta em
particular a oferenda de Maria no sacrifício do
Calvário. Ele distingue na Cruz “dois altares: um no coração de
Maria, o outro no corpo de Cristo. Cristo imolava a sua carne, Maria
a sua alma”. Maria imola-se espiritualmente em profunda comunhão
com Cristo e suplica pela salvação do mundo: “Aquilo que a mãe
pede, o Filho aprova-o, o Pai conde-o” (De septem verbis
Domino in cruce, 3: PL 189, 1694).
Dessa
época em diante, outros autores expõem a doutrina da especial
cooperação de Maria no sacrifício redentor.
4.
Contemporaneamente, culto e na piedade cristã, desenvolve-se o olhar
contemplativo sobre a “compaixão” de Maria, representada de modo
significativo nas imagens da “Pietá”. A participação de
Maria no drama da Cruz torna este evento mais profundamente humano e
ajuda os fiéis a entrarem no mistério: a compaixão da Mãe faz
descobrir melhor a Paixão do Filho.
Com
a participaçaõ na obra redentora de Cristo, é também reconhecida
a maternidade espiritual e universal de Maria. No Oriente, João, o
Geómetra, diz de Maria: “Tu és a nossa Mãe”. Ao dar graças a
Maria Epelas dores e sofrimentos suportados por nós”, ele põe em
evidência o seu afeto materno e a qualidade de Mãe em relação a
todos aqueles que recebem a salvação (cf. Discurso de despedida
sobre a Morte da gloriosíssima Nossa Senhora, Mãe de Deus, em A.
Wenger, L'Assomption de la T. S. Vierge dans la tradition byzantine,
407).
Também
no Ocidente a doutrina da maternidade espiritual se desenvolve com
Santo Anselmo, que afirma: “Tu és a Mãe... da reconciliação e
dos reconciliados, a Mãe da salvação e dos que foram salvos”
(cf. Oratio 52, 8: PL 158, 957 A).
Maria
não cessa de ser venerada como Mãe de Deus, mas o fato de ser nossa
Mãe, confere à sua maternidade divina um novo rosto e abre-nos o
caminho para uma comunhão mais íntima com ela.
5.
A maternidade de Maria em relação a nós não consiste apenas num
ligame afetivo: pelos seus méritos e intercessão, ela contribui
eficazmente para o nosso nascimento espiritual e o desenvolvimento da
vida da graça em nós. Por este motivo, Maria é chamada “Mãe da
graça”, “Mãe da vida”.
O
título “Mãe da vida”, já usado por Gregório de Nissa, foi
explicado assim por Guérrico d'Igny, falecido em 1157: “Ela é a
Mãe da Vida, da qual vivem todos os homens: gerando por si mesma
esta vida, num certo modo regenerou todos os que a haveriam de viver.
Um só foi gerado, mas todos nós fomos regenerados” (In
Assumpt. I, 2, PL 185, 188).
Um
texto do décimo terceiro século, o “Mariale”, usando uma imagem
arrojada, atribui esta regeneração ao “parto doloroso” do
Calvário, com o qual ela se tornou mãe espiritual de todo o gênero
humano”; com efeito, “nas suas castas entranhas ela concebeu, por
compaixão, os filhos da Igreja” (Q. 29 § 3).
6.
O Concílio Vaticano II, depois de ter afirmado que Maria “cooperou
de modo singular na obra do Salvador...” assim conclui: “É por
esta razão nossa Mãe na ordem da graça” (Lumem gentium, 61),
confirmando, desse modo, o sentir eclesial que vê Maria ao lado do
Filho como Mãe espiritual da humanidade inteira.
Maria
é nossa Mãe: esta consoladora verdade, que nos é oferecida de modo
cada vez mais claro e profundo pelo amor e pela fé da Igreja,
sustentou e sustenta a vida espiritual de todos nós e encoraja-nos,
mesmo no sofrimento, à confiança e à esperança.
***
(Destaque
nosso)
L'Osservatore
Romano, Ed. Port. n.43, 28/10/95, pag. 12(528)
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